sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Entre Maputo e a Cova da Moura.

Às vezes basta uma viagem para que os nossos pontos cardeais percam sentido!

De África tinha, entre ilusões e desilusões, a imagem do papel e dos ecrãs por onde, ao longo dos anos, os meus olhos regularmente viajaram. Por isso e porque nada nos pode preparar verdadeiramente para o que a realidade tem de diferente, a minha chegada a África, e mais concretamente a Maputo, foi um choque brutal!

Maputo é, para todos os efeitos, uma cidade de uma beleza admirável. À sombra de um urbanismo único, há avenidas admiráveis que se espraiam entre exemplos espantosos de uma arquitectura fulgurante e única! Abraçada pelo Índico abre-se a beleza prodigiosa da baía onde a cidade se aninhou. Aqui, sob a copa das Acácias que percorrem cada rua, há um pequeno pedaço de paraíso onde brilha o sol da África meridional.

Pelas ruas, onde caminham pessoas que são, na sua grande maioria, afáveis e gentis, há aqui um calor humano que em tudo se afasta do frio a norte e que nos devolve à magia deste continente. A vida, em cada momento, corre célere, entre vendedoras e vendedores a cada esquina, onde tudo se vende, do mais banal ao mais inacreditável, carrinhas que são transportes públicos - os chapas - cheias de gente, barulho, frenesim e um trânsito que começa a ser infernal, sobressai o bulício do dia-a-dia e há uma cidade que vibra - aqui não há o Tejo mas há o imenso Índico.

Em todo o lado se sente e em cada gesto ocorre um esforço sincero de fuga às contingências da vida, um esforço de desenvolvimento, de procura de soluções, de tentativa de aproximar este canto de África aos tão almejados padrões de vida que a norte servem de referência a tanto sul.

Mas depois há tudo o resto. E o resto aqui é imenso! Há o lixo, hoje muito melhor, segundo me dizem, mas ainda uma marca profundamente visível por todas as ruas, nalgumas mais disperso, noutras em montes, onde a higiene compromete e a saúde pública se condiciona.

Depois há a degradação urbana. E perante a qual uma pergunta imediatamente nos ocorre. Quanto anos mais aguentarão muitos destes magníficos edifícios, muitos deles com mais de 40 anos, sem que haja uma manutenção séria? E depois, ao passearmos nos passeios de cada avenida, sob a frondosa sombra de uma Acácia, há o problema das ruas, dos buracos e “crateras”, da ausência de manutenção dos sistemas de drenagem de águas, de esgotos, de pavimentos. Há em quase tudo o que é parte do ambiente urbano uma desoladora degradação. E há ainda, sobrevoando acima de tudo e dominando todas as paisagens, a pobreza. A pobreza chocante das pessoas, que entre a indignidade das vidas passadas no desespero da subsistência e a dignidade da luta de cada dia, acabam por ser raios de esperança. Há a pobreza traumatizante dos bairros na periferia, imensos e desoladores. No fundo há toda uma pobreza que marca um país, que entre tanto passado – o colonialismo, as guerras, o racionamento, a seca, a fome -, procura ardentemente um futuro. Um futuro onde caiba todo o esplendor desta maravilhosa terra onde apesar de tudo e enquanto português acabo por sentir um orgulho vaidoso do tanto que ainda por cá ficou e perdura da nossa memória colectiva e em relação ao qual me assalta um sincero desejo de sucesso.

E tudo isto, no limite, me recorda as espúrias e absurdas discussões sobre a Cova da Moura.

Há de facto e em tudo o que aqui vi um choque que a esquerda das favelas coloridas jamais poderá entender. Aqui, onde o socialismo real apenas trouxe a mais brutal e inimaginável penúria, o romantismo serôdio de alguns pela preservação de uma certa Cova da Moura, ou por uma qualquer perpetuação de uma suposta vida comunitária, mais não é que a manutenção eterna de degradantes ciclos de pobreza, e é, por isso, a mais absurda marca de uma indigência que aqui tanto se luta por ultrapassar e que a nós, aí, na confortável Europa, só nos devia envergonhar ao pretender manter.

Em África e em Maputo há uma realidade que nos demonstra com uma clareza chocante a miséria intelectual dos que em Portugal acham que colorir a miséria da Cova da Moura é a solução. Só mesmo o conforto indigente de uma certa esquerda soissante huitard se lembraria de tais insultos aos que aqui, longe do caviar, lutam todos os dias para ir além das supostas belezas antropológicas e etnográficas das ruelas da Cova da Moura e procuram, desesperadamente, um pedaço do conforto que aí, alguns se acham no direito de recusar aos que daqui e de outros pontos deste continente para aí emigram à procura do contrário de tudo o que acabaram por encontrar. A bênção de uma certa esquerda à perenidade do bairro da Cova da Moura só me faz pensar que, de facto, há uma certa etnografia e antropologia cultural que sempre me irritaram.

E por tudo isto, aqui, no continente onde tudo começou, há um tempo que ficou e um novo e melhor tempo que de certeza virá. Aí, pelos vistos, há apenas um regresso ao passado. O problema é que é ao passado dos outros e não ao nosso. Aquele passado de museu de história natural que tanta esquerda aprecia mas que fica longe, muito longe, das vidinhas coloridas que na realidade levam.

Há de facto alturas em que uma estadia longa no bairro de Infulene faria muito bem a certas cabeças, pelo menos descoloria-lhes a estupidez.

Luís Isidro Guarita

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